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ARTIGO - Os riscos do uso indevido da Ritalina para atletas = Por João Antonio de Albuquerque e Souza
O uso não terapêutico de substâncias controladas para fins de
performance tem se tornado uma realidade silenciosa entre jovens que
buscam destaque acadêmico ou profissional. Em especial, a Ritalina,
medicamento à base de metilfenidato, tem ocupado um espaço controverso
nesse cenário. De um lado, há sua indicação médica legítima para o
tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH);
de outro, sua apropriação indevida como ferramenta de concentração
artificial e, em contextos esportivos, como agente dopante.
Lançada na década de 1950, a Ritalina revolucionou o tratamento de pacientes com TDAH. Seu princípio ativo estimula a ação de neurotransmissores como dopamina e noradrenalina, promovendo foco, controle da impulsividade e melhor regulação cognitiva. Entretanto, os mesmos mecanismos que auxiliam na estabilidade clínica de quem convive com o transtorno tornam-se alvo de uso abusivo quando empregados fora desse contexto, especialmente por estudantes e candidatos a concursos em busca de vantagem cognitiva.
No ambiente esportivo, o uso do metilfenidato é ainda mais delicado. Classificado como substância proibida pela Agência Mundial Antidopagem (WADA), a presença do estimulante em amostra de atleta configura uma violação de regra antidopagem. A lógica por trás da proibição é clara: a substância é capaz de oferecer ganhos artificiais de atenção e desempenho, comprometendo a isonomia entre competidores. O período de suspensão é de quatro anos se o uso da substância tiver sido intencional e de, no máximo, dois anos, caso o uso não tenha tido relação com a intenção de melhorar rendimento esportivo.
Um exemplo recente ilustra bem: o ciclista dinamarquês Christian Kornum foi suspenso após testes antidoping apontarem a presença de metilfenidato. O atleta reconheceu o uso da substância e alegou que usou para estudar e se preparar para uma prova na faculdade, desconhecendo que ela era proibida no esporte. A Agência Antidoping Dinamarquesa (DIF) classificou o caso como de doping “não intencional”, mas reforçou que a responsabilidade pelo que entra no corpo é sempre do atleta. Por isso, suspendeu o ciclista por dois anos. O episódio evidencia a fragilidade das fronteiras entre as esferas da vida do atleta — estudantil e esportiva — e também o quanto a ausência de educação antidopagem pode comprometer carreiras promissoras.
Para atletas que de fato possuem TDAH, existe uma alternativa segura e legal: o pedido de Autorização de Uso Terapêutico (AUT). Trata-se de um mecanismo previsto pelas autoridades antidopagem que permite a utilização de determinadas substâncias controladas por motivos clínicos, desde que se comprove que o uso não oferece vantagem competitiva indevida.
A concessão da AUT exige a comprovação efetiva de diagnóstico da condição médica. Além disso, o uso da substância não pode resultar em melhora significativa no desempenho esportivo, e o tratamento prescrito não deve ter uma alternativa terapêutica permitida que seja razoável. Casos como o da ginasta Simone Biles, que declarou publicamente ser diagnosticada com TDAH e utilizar medicação controlada sob autorização oficial, são fundamentais para desmistificar o tratamento. Eles demonstram que é possível conciliar saúde mental e alta performance com responsabilidade e transparência.
A questão, portanto, não reside na proibição do medicamento para atletas, mas no contexto e na intencionalidade de seu uso. O metilfenidato não é, em si, um vilão, mas se torna um risco quando utilizado sem prescrição médica. Além disso, o consumo socialmente normalizado de “potencializadores cognitivos” sem diagnóstico médico não apenas banaliza tratamentos legítimos, como também abre margem para uma cultura de desempenho tóxico e de desigualdade estrutural, seja nas salas de aula, seja nas arenas esportivas.
A realidade atual demanda uma ação coordenada: é urgente reforçar campanhas de conscientização sobre os limites éticos e legais do uso de substâncias como a Ritalina, promover a educação antidopagem de maneira mais ampla e sistemática, e desmistificar o pedido de AUT como ferramenta legítima de inclusão. Afinal, a integridade esportiva não pode estar dissociada da saúde física e mental dos atletas, e isso passa, necessariamente, por um debate franco sobre até onde vai o uso terapêutico e onde começa o doping disfarçado de aprimoramento de performance.
João Antonio de Albuquerque e Souza é atleta olímpico, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito e Justiça Social pela UFRGS. Atualmente, é Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) e sócio fundador do escritório Albuquerque e Souza. Com expertise em Direito Civil, Trabalhista e Desportivo, sua atuação abrange temas como contratos e responsabilidade civil