Foto: Divulgação/Arquivo O Candeeiro
ARTIGO - Geopolítica não deveria impedir atletas de disputarem competições internacionais = Por João Antonio de Albuquerque e Souza
A Carta Olímpica é clara ao afirmar que o objetivo do Olimpismo é
colocar o esporte a serviço do desenvolvimento harmônico do ser humano,
favorecendo uma sociedade pacífica e comprometida com a dignidade
humana. No entanto, episódios recentes demonstram o afastamento desse
ideal. O caso dos atletas israelenses impedidos de participar do Mundial
de Ginástica Artística na Indonésia, em razão da negativa de vistos
pelo país anfitrião, escancara como decisões políticas e diplomáticas
estão interferindo diretamente na liberdade esportiva. O Tribunal
Arbitral do Esporte (CAS) chegou a julgar o caso, mas manteve o evento
sem a participação dos atletas, reforçando uma contradição entre os
princípios olímpicos e a prática internacional.
Essa não é uma situação isolada. Em julho
deste ano, o mesa-tenista brasileiro Hugo Calderano foi impedido de
entrar nos Estados Unidos por ter visitado Cuba em 2023, quando disputou
o Pan-Americano e o evento classificatório para as Olimpíadas de Paris.
O veto não teve qualquer relação com sua conduta esportiva, mas com um
fator externo: a política de imigração norte-americana que restringe o
ingresso de quem visitou determinados países. Assim, um atleta exemplar,
que representa o Brasil com destaque mundial, acabou sendo penalizado
por uma questão puramente geopolítica.
Esses casos evidenciam uma distorção grave no
sistema esportivo internacional. Atletas têm sido punidos não por
violarem regras esportivas, mas por serem cidadãos de determinados
países ou por estarem sujeitos às políticas de seus governos. Em muitos
casos, são impedidos de participar de competições decisivas, como
campeonatos mundiais ou torneios classificatórios para os Jogos
Olímpicos, simplesmente pela ausência de visto, uma barreira burocrática
que ganha contornos de discriminação política.
Historicamente, o esporte foi concebido como
espaço de neutralidade e diálogo. Desde a Grécia Antiga, guerras eram
suspensas para que as Olimpíadas pudessem ocorrer em paz. No entanto, a
contemporaneidade mostra que conflitos geopolíticos se refletem
diretamente na arena esportiva. O banimento prolongado de atletas russos
após a invasão da Ucrânia é outro exemplo de como decisões estatais
recaem sobre indivíduos que, em regra, não têm participação ou poder de
influência sobre as ações de seus governos.
No contexto da Rússia, estima-se que entre
2022 e meados de 2024, 353 atletas russos mudaram de nacionalidade
esportiva para poder competir internacionalmente, segundo levantamento
publicado pela Frontiers in Sports and Active Living. É preciso,
portanto, fazer uma distinção ética e prática entre os atos dos Estados e
os direitos dos atletas enquanto profissionais do esporte. Impedir a
participação de um atleta por sua nacionalidade equivale a negar o
próprio propósito do esporte como instrumento de união e entendimento
entre os povos.
O atleta não é o governo que o representa; é
um indivíduo que treina, compete e vive sob valores de disciplina,
mérito e respeito, os mesmos que o movimento olímpico deveria proteger.
Do ponto de vista jurídico e moral, as federações esportivas
internacionais e o Comitê Olímpico Internacional (COI) têm a
responsabilidade de garantir que as competições mantenham sua
integridade e universalidade. Quando países-sede impõem barreiras
políticas à entrada de atletas, violam não apenas tratados esportivos,
mas princípios fundamentais de igualdade de condições e fair play.
O COI e demais entidades deveriam agir de
forma firme, desestimulando que nações com histórico de veto ou
discriminação recebam eventos de prestígio, como Copas do Mundo, Jogos
Olímpicos ou campeonatos mundiais. A neutralidade esportiva é uma
necessidade para preservar a legitimidade das competições e o valor
simbólico do esporte como linguagem universal. Em um mundo fragmentado
por disputas ideológicas e econômicas, o campo esportivo deveria
permanecer como território de convergência, não de exclusão.
Permitir que atletas paguem o preço das
decisões de seus governantes é corroer o princípio mais essencial do
Olimpismo: o de que o esporte é um espaço de igualdade e fraternidade.
Diante disso, o que está em jogo é o próprio futuro do ideal olímpico.
Se a geopolítica continuar ditando quem pode ou não competir, deixaremos
de celebrar o mérito esportivo para reproduzir, nas quadras e arenas,
as divisões que o esporte nasceu para superar. É urgente resgatar o
espírito de neutralidade, solidariedade e respeito humano que deve guiar
a convivência entre os povos, dentro e fora das arenas.
João
Antonio de Albuquerque e Souza é atleta olímpico, graduado em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em
Direito e Justiça Social pela UFRGS. É ex-Presidente do Tribunal de
Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) e sócio fundador do escritório
Albuquerque e Souza. Com expertise em Direito Civil, Trabalhista e
Desportivo, sua atuação abrange temas como contratos e responsabilidade
civil
