Romaria de Bom Jesus da Lapa/ Foto: Reprodução/Harlen Cristian
Os saberes que o tempo apaga na Bahia
A cultura da oralidade, que são aquelas tradições passadas no “boca a boca”, fazem parte da construção da identidade de povos e regiões, especialmente quando falamos das culturas populares. Nesses casos, há a necessidade de um trabalho constante de memorização e repasse, essencial para a continuidade desses saberes.
Entre as histórias contadas à beira do fogão, as cantigas entoadas em celebrações populares e os ensinamentos transmitidos de avós para netos, a cultura nordestina é um exemplo de herança construída por memórias que ultrapassam o tempo e as pessoas. São conhecimentos que, mesmo sem registros escritos, seguem sustentados pela oralidade, pela prática e pela dedicação daqueles que ainda mantêm vivo o que aprenderam. No entanto, nos dias atuais, o tempo insiste em apagar esses saberes, que vêm se enfraquecendo principalmente pela perda de identidade cultural e pelo afastamento das novas gerações de suas raízes.
No Nordeste, com foco na Bahia, ponto central desta pesquisa e reportagem, berço de tradições e resistência, a ausência de registros escritos e o afastamento das novas gerações de suas raízes ameaçam práticas culturais que moldaram a identidade brasileira. Rituais religiosos, cantigas populares, modos de preparo de alimentos como cozinhar com as tias que ensinam segredos das receitas típicas às crianças e expressões linguísticas, antes transmitidas naturalmente, hoje correm o risco de se perder.
A cultura regional está também no caminho para a roça, nas letras do forró, na capoeira, cirandas de rua, nas danças populares e também nas procissões e festas de santos. É através do ouvir e do repetir que crianças aprendem sobre essas raízes, sobre os valores e modos de vida. Essa transmissão oral garante a continuidade de rituais e práticas culturais, funcionando como um elo entre mestres e aprendizes.
A região guarda memórias que ultrapassam gerações, mais na voz do que no papel. São lembranças que desafiam o tempo, mas enfrentam o esquecimento silencioso.
As novas tecnologias e o desafio da preservação
Um dos motivos que vêm enfraquecendo as tradições mora no avanço veloz da tecnologia. Os celulares ficaram mais inteligentes, as redes sociais mais viciantes e o desejo de estar “conectado a tudo” virou quase uma exigência da vida moderna. E no meio dessa pressa digital, o que antes servia como objeto de união agora também afasta, os mais novos se distanciam pouco a pouco das raízes que sustentam a cultura popular, enquanto antigos saberes vão se apagando entre um toque na tela e outro.
O que deveria ser aliado na preservação da memória, muitas vezes se transforma em inimigo silencioso. A tecnologia facilita, aproxima e dá voz, mas também homogeneíza, deixa tudo igual, apaga sotaques e simplifica aquilo que, por natureza, é complexo e cheio de história. O filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy, ao discutir a chamada cibercultura, já apontava essa contradição, “a internet cria novas formas de convivência e aprendizado, mas pode afastar as pessoas daquilo que não cabe na lógica das plataformas.”
No nordeste, esse efeito é visível. Os costumes, antes passados de geração em geração, hoje disputam espaço com as “trends” que brotam nas telas, há uma “tiktokzação” da cultura, onde até mesmo festas tradicionais, como as juninas, ganham filtros, dancinhas e formatos pensados para agradar o algoritmo. Carla Patrícia, pedagoga e contadora de história em Aporá, lembra que, “As crianças veem tudo em formato rápido, não têm paciência para ouvir uma história inteira, para entender a origem das coisas. Isso faz com que o conhecimento se dilua, e a cultura viva se perca.”
O papel dos mais velhos
Os mais velhos carregam consigo conhecimento histórico da região em que vivem e da qual adquiriram seus saberes e experiências, construídas com o nascimento de suas comunidades, são aprendizados acumulados na bagagem que vem desde a infância. Atualmente, poucas crianças e adolescentes sentam e “prestam atenção” nas conversas sobre a época em que seus pais eram crianças ou sobre os mutirões comunitários para plantar milho e entoar cantigas.
Carla Patrícia observa, “A receptividade dos jovens não existe mais, não querem ouvir, não querem saber das suas tradições, não conhecem a sua história, não se importam em pesquisar sobre a origem dos locais. Vivemos num mundo onde tudo é muito tecnológico e deixamos de valorizar realmente a nossa cultura, os nossos saberes, os remédios caseiros, a comida.”
Essa falta de interesse apontada pela professora compromete a absorção dos saberes transmitidos verbalmente, impede a aprendizagem das tradições e fragiliza o vínculo entre os mais velhos e os mais novos. Quando o espetáculo do universo digital substitui o interesse pelo que é real, se não houver cuidado, os momentos que deveriam ser celebrados viram preocupação para conteúdo, deixando as memórias no esquecimento.
Já Diego Copque, historiador e pesquisador do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) discorda dessa teoria de desinteresse e ressalta que “o que falta é a oportunidade de acesso”.
História e desigualdades
É uma região que historicamente não teve estruturas adequadas para alfabetizar sua população, principalmente por fatores econômicos. Com menor desenvolvimento e marcada pela concentração de pobreza, essa área recebeu menos prioridade em investimentos voltados à educação.
Segundo apuramos, por muitos anos, em comunidades rurais da Bahia, a presença de educadores não significava, necessariamente, a existência de escolas estruturadas. Eram núcleos familiares grandes, com casais que chegavam a ter mais de cinco (5) filhos. Essas crianças, em vez de irem para a escola, eram levadas para a roça, onde ajudavam no plantio e cultivo, atividades das quais vinha o sustento familiar.
Maria Dalvina, 70 anos, ou simplesmente Dalva, como ela está acostumada a ouvir desde menina, viveu esse período, ela mora numa comunidade à beira da pista em Aporá, cidade a mais de 100 km de Salvador. Irmã entre oito filhos, ela conta que nunca teve a chance de aprender a ler e escrever, “Quem ensinava as meninas [irmãs mais novas, sem idade para ir à roça] era mãe. Ela aprendeu com uma prima dela que foi pra casa da minha avó. Ficou lá uns dias e ensinou a mãe. Ela disse que tinha tanta vontade de estudar, tinha tanta vontade de aprender ler, nunca tinha ido numa escola, aí tanta vontade que tinha, diz que de um dia para uma noite ela aprendeu a ler e escrever.”
“Eu não aprendi! É, meu filho, nós trabalhávamos, não tinha como… trabalhava, fazia de tudo, naquele tempo era roça, era lenha, era fonte, como era que estudava?
Nessa época, não tinha escola, não tinha nada assim, nada. Quando começou a ter escola, era pago, pai não podia pagar a escola por nós.”
Essa é só uma das histórias que ilustram como a sobrevivência diária e a falta de políticas públicas educativas marcaram profundamente a região e contribuíram para que muitos saberes fossem transmitidos apenas de forma oral, dependendo do esforço individual e familiar.
Como a prioridade era a sobrevivência, essas crianças que hoje são pais, avós e bisavós acabaram excluídas do processo de alfabetização. Por isso, hoje há poucos registros formais dos saberes adquiridos ao longo da vida, que dependem da transmissão oral.
Diego Copque contextualiza: “O Nordeste sempre sofreu com políticas públicas que priorizam o urbano em detrimento do rural. Isso afetou diretamente a transmissão de saberes tradicionais. Muitas de nossas tradições foram se transformando ao longo do tempo, mas também existem processos de silenciamento cultural, concebidos de forma intencional para apagar determinadas práticas.”
A responsabilidade das novas gerações
A responsabilidade de manter as tradições está nas mãos dos mais novos, no saber crítico sobre como e de onde preservar falas, canções e histórias. É através do conhecimento da história que os jovens podem lutar pelo espaço e preservação da cultura ancestral do nordeste.
Carla Patrícia reforça: “Nosso projeto em Aporá busca mostrar às crianças que a cultura não é só história, é também experiência. Fazemos oficinas, contação de histórias e valorizamos cada detalhe do dia a dia, desde cantigas até receitas de família.”
Diego acrescenta: “Iniciativas institucionais, combinadas com o protagonismo comunitário, podem evitar que muitas tradições desapareçam. Mas é preciso ação consistente, não apenas eventos isolados.”
Políticas públicas e iniciativas de preservação
A falta de políticas públicas que valorizem a transmissão dos saberes culturais também influencia o processo de homogeneização. Para Diego, programas educativos, incentivo à pesquisa, premiações e registro audiovisual são ferramentas essenciais: “O que não se registra, o vento leva. O escrito possibilita a pesquisa e ajuda a consolidar a memória coletiva.”
Projetos como “A Moça da Saia” e o "Sarau do Saber", criados por Carla Patricia, aproximam os jovens da oralidade, da leitura e das tradições do lugar onde vivem. No A Moça da Saia, ela usa uma saia gigante para contar histórias, cantigas e cirandas que fazem parte da cultura do povo. Já no Sarau do Saber, realizado entre 2019 e 2022, em escolas de ensino fundamental na cidade, os estudantes entrevistaram moradores da própria comunidade e transformaram essas memórias em pequenos livretos. Assim, passam a reconhecer o valor da própria história, do território e das raízes que carregam.
Já em Camaçari, cidade da Região Metropolitana de Salvador, estudantes da Escola Municipal Eustáquio Alves de Santana criaram o projeto “Mestres Mirins da Cultura Popular". Realizada entre 2019 e 2020, a iniciativa levou os alunos a mapear tradições do bairro, ouvir mestres locais e produzir um mapa cultural de Parafuso, estimulando novos praticantes e fortalecendo o orgulho da comunidade. Parafuso é um território de origem indígena e quilombola, antes chamado Piranema.
Carla completa:“Precisamos mostrar às crianças que elas podem ser protagonistas da própria história, que cada memória, cada canção, cada brincadeira tem valor.”
O que podemos esperar do futuro
Apesar das dificuldades, há espaço para esperança. A cultura nordestina, a cultura da Bahia continua viva nas vozes, nas ruas, nas festas e nos saberes das famílias, a preservação depende de ação coletiva entre políticas públicas firmes, educação formal que valorize os saberes tradicionais, tecnologia bem usada para registrar e difundir o patrimônio imaterial e, sobretudo, o envolvimento das novas gerações.
E, como lembra Carla Patrícia, essa valorização começa no dia a dia: “Quem trabalha com preservação cultural precisa sair remendando os retalhos. O retalho da música, da poesia, das cantigas, dos saberes das pessoas mais velhas precisa ser visitado, catalogado, registrado. Não deixem a cultura morrer, não deixem os saberes e fazeres do nosso povo desaparecerem com eles.”
