“Pai Pote no Bembé do Mercado em 2018” / Foto: Zeza Maria
ENCRUZILHADA E RESISTÊNCIA: A POTÊNCIA POLÍTICA DO BEMBÉ DO MERCADO
No
coração do Recôncavo Baiano, uma festa de axé, memória e afirmação
negra se repete há mais de um século. Realizado anualmente em maio, o
Bembé do Mercado transforma a feira de Santo Amaro em um terreiro a céu
aberto, onde orixás, folhas, atabaques e comidas rituais tomam o espaço e
convocam o passado a caminhar junto com os vivos. Muito mais do que uma
celebração religiosa, o Bembé é também um ato de resistência e
reinvenção da liberdade no Brasil pós-abolição. Este ano, o Bembé já
começou. Desde o dia 10 de maio, o Mercado vem sendo transformado
gradualmente, preparando o espaço para os festejos religiosos que têm
início amanhã, 13 de maio, com a tradicional alvorada às 6h da manhã. Conhecido
também como “Treze de Maio”, o Bembé teve sua primeira edição em 1889,
no rastro imediato da assinatura da Lei Áurea. Em um país que formalizou
a abolição sem garantir reparação, dignidade ou cidadania ao povo
negro, o Candomblé, ali, não apenas sobreviveu: ocupou a rua e inscreveu
um novo marco de liberdade negra. A festa se tornou um “Candomblé
territorializado no espaço do mercado”, como define a oralidade da
cidade, desafiando as margens que sempre tentaram empurrar os terreiros
para fora do mapa visível da cidade. A
cada edição, o povo-de-santo sai de seus terreiros e caminha até o
mercado municipal, onde a praça se transforma em encruzilhada: espaço de
passagem, memória e poder. O Padê para Exu, orixá que abre caminhos, é
ofertado logo no início da celebração, abrindo as veredas entre mundos e
tempos. Os artefatos presentes, quartinhas, comidas, folhas,
ferramentas dos orixás, são mais que objetos: são corpos sagrados que
carregam axé, força vital que transcende o visível e convoca o
encantado. A
ancestralidade é pilar central do Bembé. Antes mesmo das decisões sobre
a festa serem tomadas, os babalorixás e ialorixás do passado são
invocados em jogo divinatório. É com eles, os finados líderes
espirituais que já conduziram o ritual, que os preparativos são
compartilhados. A festa se faz com os vivos e os mortos, porque, como
ensina a filosofia negro-africana, “a morte está dentro da vida”. Assim,
os ancestrais não são apenas lembrados, eles participam, orientam,
protegem. A
devoção a Iemanjá, Rainha do Mar, se mantém como eixo de união. A ela,
que representa liberdade e sustento através das águas, são oferecidas
flores e canções em meio ao canto dos atabaques. Em sua força, o Bembé
ecoa a fé que resistiu à escravidão, às perseguições religiosas e à
violência estrutural do Estado. Mais
do que um evento litúrgico, o Bembé do Mercado é um corpo político. Ele
recusa o apagamento e inscreve a presença negra como fundamento da
cidade. Ao fazer da feira um terreiro, o Candomblé reafirma seu direito à
rua, à fé e à história. Nas oferendas e nas danças, na folha e na fala,
pulsa um Brasil que se nega a esquecer os que caminharam antes e a
potência que brota do axé coletivo. Em Santo Amaro, o Bembé é feitiço e
futuro, encruzilhada viva entre o que foi e o que ainda virá. Por David Sol
